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e os seus efeitos terapêuticos, com destaque para a vertente musical

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Quem canta seus males espanta

No seguimento da Música Traz Saúde a Leiria, partilho outro artigo que encontrei a relatar a prática de Musicoterapia no Hospital de Santo André.


«Quando o elevador pára no 4.o piso do Hospital de Santo André (HSA), em Leiria, há uma estranha quietude. As portas amarelas estão trancadas por dentro, ao contrário do que acontece nos outros serviços. Estamos na psiquiatria. Ala esquerda para as mulheres, ala direita para os homens. É aqui que se tratam as dores que atormentam mais a alma do que o corpo. É aqui que "todos temos um lugar guardado", como diz António Cabeço, director do serviço. Se dúvidas houvesse, Márcia Ferreira estaria pronta a desfazê-las. Aos 23 anos de uma vida saudável, viu-se do lado de dentro deste serviço, com crises de ansiedade diagnosticadas, uma gaguez que chegou a ser completo mutismo até a fala ser resgatada pela música.

Márcia é o caso mais marcante de sucesso da musicoterapia que chega aos doentes duas vezes por semana através do projecto inédito "Saúde com Arte", da Sociedade Artística e Musical dos Pousos (SAMP). A ideia está sob a batuta do maestro Paulo Lameiro, no âmbito de um protocolo estabelecido com o HSA.

Agora que os dias difíceis já lá vão, Márcia conta com clareza tudo aquilo de que se lembra, desde 23 de Janeiro, altura em os espasmos que já tinha há dois meses lhe apanharam os músculos do corpo e da cara. Foi assim que deu entrada no serviço de urgências do HSA.

Uma punção lombar, depois cinco dias em observações e uma ressonância magnética. Dentro da máquina sentiu-se mal. Quando saiu só gaguejava. O diagnóstico não concluiu nada físico e a equipa médica julgou tratar-se de crises de ansiedade. Foi o que lhe disse o psiquiatra, salvaguardando que só a poderia ajudar "se ficasse internada na psiquiatria".

Do primeiro dia de internamento não tem memórias. Dos outros não guarda as melhores. "Vi coisas que nunca pensei que iria ver." Mas fez uma amiga, na colega de quarto. "Era uma rapariga que não dormia. E tomou tantos medicamentos para conseguir dormir, que eles [os médicos] julgavam que ela se tinha tentado suicidar." Márcia continuava a gaguejar. Ali ficou mais de duas semanas. Gostava de ouvir a Raquel, da SAMP, tocar e cantar, às segundas e quartas, porque a par do futebol, a música é outra paixão. Um dia, da viola saíram os acordes de "Fado - Lusitana Paixão", de Dulce Pontes, que Márcia gostava de cantar. O momento há-de ser lembrado por muito tempo no 4.o piso do HSA. "Comecei a cantar. E depois, quando comecei a falar, já não gaguejava. A Raquel e as enfermeiras começaram a chorar." Márcia ainda agora se emociona quando conta a história. Só passou um mês.

A música entrou pela psiquiatria adentro em Janeiro de 2009. Antes, já se tocava e cantava para os doentes crónicos, que estão na aldeia de Andrinos, perto de Leiria. Começou por ser apenas à quarta-feira, durante uma hora e meia. "Mas logo de início percebemos que era muito pouco. E por isso começámos a fazer mais uma hora, à segunda, em regime de voluntariado", conta a professora de Música, Raquel Lopes, sem nunca se separar da viola, o único instrumento que não descansa durante as sessões. Os outros passam de mão em mão. Há ali gente de todas as idades, mas os jovens são maioria. António Cabeço confirma a tendência, associada ao aumento de número de casos que o hospital trata neste piso. Só no ano passado internou cerca de mil doentes, que ali passaram uma média de 18 dias. Desde tentativas de suicídio a crises de ansiedade, há de tudo no serviço de psiquiatria.

Na ala masculina, a professora Raquel Lopes e a educadora de ensino especial Felisbela Belchior têm pouco público na sala de convívio, entre os sofás e a mesa de pingue-pongue. Distribuem maracas por meia dúzia de homens. Trazem com elas um carrinho usado habitualmente para transportar medicamentos, que agora deram lugar ao berimbau, à sanzula, ao pau-de-chuva, às pandeiretas. Cantam "Vejam Bem", de Zeca Afonso, depois de outras canções populares. Alguns continuam alheados, mas à medida que a música vai passando, cresce a atenção, quase entusiasmo.

R. tem apenas 16 anos, é o mais novo elemento da ala masculina. Gosta tanto de ouvir cantar e tocar a "Laurindinha", que quando Raquel pergunta "então o que é que vamos cantar agora?", responde sem hesitar. Daqui a pouco há-de querer seguir a música até à ala feminina, onde não pode entrar. Será preciso fechar as portas do corredor que separa homens e mulheres nas doenças mentais.

uma menina que está à janela Chamadas pela música, elas - sobretudo as de meia-idade - juntam-se logo no início da ala que lhes está destinada. Cantam e batem palmas para acompanhar Raquel e Bela. Algumas afastam-se. Deitam-se nas camas. Outras não chegam a levantar-se. Canta-se a "Menina Estás à Janela", como se tivesse sido feita a pensar em H., não mais de 20 anos, sentada na cama. A música tem esse dom de libertar as emoções. A rapariga chora, e prefere nem ouvir. É dela que Raquel se há--de despedir, no final, porque na hora do adeus, H. vem até à porta perguntar-lhe se lhe ensina a tocar viola. "Vais-te pôr boa e depois procuras-nos na SAMP, combinado?"

Não há ainda dados coligidos sobre a influência da musicoterapia na recuperação dos doentes mentais. Mas Raquel Lopes não tem dúvidas: a música não substitui os fármacos, "mas é um bom complemento". António Cabeço concorda. Mas o que queria mesmo, no imediato, era mais psiquiatras no seu serviço.»

texto de Paula Sofia Luz, acedido em iOnline
imagem acedida em http://www.tintafresca.net/_uploads/Edicao98/SAMP1.JPG

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