Um espaço para partilha de ideias relacionadas com as práticas artísticas
e os seus efeitos terapêuticos, com destaque para a vertente musical

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Musicoterapia, Autismo e Comunicação

Hoje celebra-se o Dia Mundial da Consciencialização do Autismo.
A palavra autismo deriva da palavra grega autos, que significa ego. Foi utilizada pela primeira vez, em 1942, por Kanner, para descrever onze casos de crianças que apresentavam um quadro caracterizado por obssessão, estereotipias e ecolália. Lorna Wing e Judith Gould (1979) definiram o conceito de autismo como uma síndrome caracterizada por desvios qualitativos na comunicação, integração social e capacidade para realizar o jogo simbólico. Designaram o conjunto destes três sinais por Tríade, que consideraram responsável por um padrão de comportamento restrito caracterizado por insistência na repetição. Em 1996, Wing sugere a utilização do termo Perturbação do Espectro do Autismo (PEA), sendo hoje um dos conceitos mais amplamente aceites.
Afecta dez a quinze pessoas em cada dez mil, sendo esta proporção quatro vezes mais frequente no sexo masculino. A probabilidade de aparecimento de PEA em familiares directos é 50 a 100 vezes superior à da população em geral, pelo que é evidente a existência de uma base biológica/genética, sendo actualmente aceite que a perturbação está presente no nascimento. Contudo, presentemente, não existem testes laboratoriais ou genéticos que permitam identificar/detectar o autismo. A PEA pode manifestar-se precocemente, desde os primeiros dias de vida, sendo, no entanto, comum crianças aparentemente normais apresentarem as primeiras características da PEA apenas a partir dos 18 meses.

O motivo mais frequente da consulta destas crianças prende-se com desvio ao nível da comunicação – ausência de procura de contacto ocular, falta de sorriso social ou de uso de gestos – e/ou atraso no desenvolvimento da linguagem. Este atraso pode consistir na dificuldade em compreender e utilizar expressões metafóricas, na sua vertente mais leve, ou ir até à ausência de linguagem verbal, em casos severos. Podemos, ainda, encontrar crianças com um discurso repetitivo e ausente de significado, apresentando ecolália imediata (repetindo o que lhes foi dito no momento) ou ecolália diferida (repetindo frases ouvidas anteriormente).
Relativamente às dificuldades de socialização, indivíduos com PEA apresentam, comummente, dificuldades em relacionar-se com os outros, nomeadamente pela falta de reciprocidade na relação social e incapacidade para compreender e partilhar sentimentos e emoções. Estas dificuldades tornam difícil a criança colocar-se no lugar do outro, levando, frequentemente, à diminuição ou mesmo ausência da capacidade de imitar.
As dificuldades observadas ao nível do jogo imaginativo/simbólico reflectem-se na rigidez e inflexibilidade do comportamento, pensamento e linguagem. Poderá haver dificuldade na aceitação de mudanças, evidência de comportamentos obsessivos e ritualistas, bem como compreensão literal da linguagem.
Pode, ainda, verificar-se a presença de aversão ao toque, comportamentos auto-agressivos, estereotipias, problemas de alimentação e de sono, entre outros. As estereotipias reflectem um défice criativo, sendo comportamentos repetitivos e reiterados com a função única de retro-alimentação cinestésica ou sensorial. Apesar da discrepância entre autores, é consensual a existência de um défice generalizado nas capacidades cognitivas, nomeadamente ao nível da atenção, percepção – apresentam respostas anormais perante estimulação sensorial proveniente dos diversos órgãos sensoriais – e dos processos intelectuais – estudos apontam que cerca de 80% das crianças com PEA apresentam um Q.I. inferior a 70, dentro das quais 60% apresentam valores abaixo dos 50.

A musicoterapia tem demonstrado ser eficaz na alteração de comportamentos definidos e específicos, oferecendo a possibilidade de desenvolver e potenciar comportamentos comunicativos, interacções e respostas sociais na PEA.



Saperston (1973) conduziu um estudo com uma criança de oito anos de idade, tendo verificado que, com o decorrer das sessões de Musicoterapia, a criança começou a sorrir, a estabelecer contacto ocular com o musicoterapeuta, evidenciando, também, vocalizações mais frequentes, e demonstrando, ainda, iniciativa para se sentar próxima deste, no início da sessão.
Ricketts (1976) recorreu à técnica de improvisação de musicoterapia com um duas crianças, tendo verificado que uma, de quatro anos, que anteriormente não apresentava contacto ocular nem discurso funcional, depois de três anos e meio de intervenção, começou a estabelecer o contacto ocular, apresentava um vocabulário de 50 palavras e demonstrava compreender frases simples. A outra criança, de nove anos de idade, após seis anos de intervenção, alcançou um elevado performance musical, tendo entrado num conservatório onde estudou violino, piano e composição.
Miller & Toca (1979) estudaram um caso de uma criança de três anos, com PEA, em fase não-verbal. Verificaram que a criança começou a articular palavras quer nas sessões da terapia, quer em contexto extra-terapêutico. Depois de 35 sessões, a criança começou a combinar palavras em frases simples e a demonstrar responsividade.
Wimpory, Chadwick & Nash (1995) recorreram à musicoterapia no sentido de desenvolver as competências comunicativas numa criança com três anos de idade com PEA. Os resultados obtidos reportam algumas mudanças, nomeadamente, uma diminuição no tempo de reconhecimento da mãe, o desenvolvimento da capacidade de iniciar e manter o contacto ocular e, ainda, a emergência de iniciativa nas interacções comunicativas. Wimpory & Nash, em 1999, realizaram um novo estudo com uma menina com PEA, tendo verificado o desenvolvimento do contacto ocular, uma maior frequência de situações comunicativas, emergência de jogo simbólico e iniciativa para realizar brincadeiras com a mãe.
Em 1998, Starr & Zenker realizaram um estudo semelhante numa criança com PEA de cinco anos de idade, tendo comprovado igualmente, o desenvolvimento da competência de contacto ocular, bem como o aumento do tempo de atenção conjunta e de permanência em actividade com outrem. Os autores realizaram outro estudo, também em 1998, com uma criança com PEA, perspectivando o desenvolvimento das suas competências linguísticas e o uso apropriado de pronomes pessoais na primeira pessoa. Verificou-se que, no final da terapia, a criança revelou um maior comprimento médio de enunciado, utilizando, portanto, frases maiores e mais complexas, além de recorrer ao pronome “eu” com maior frequência.
Gold, Wigran & Elefant (2006) evidenciaram os progressos de sessões de musicoterapia em crianças autistas, demonstrando o aumento da frequência de estabelecimento e do tempo de manutenção de contacto ocular, desenvolvimento da capacidade de atenção conjunta e, ainda, uma maior frequência na ocorrência de turn-taking, comparando com outras actividades do quotidiano destas crianças.

"Music expresses that which cannot be said and on which it is impossible to be silent"
(Victor Hugo)


Bibliografia:
  • Carpente, J. (2009). Contributions of Nordoff-Robbins Music Therapy within the DIR®/Floortime™ Framework to the Treatment of Children with Autism: four cases studies. Dissertation Submissed In Partial Fulfillment of the Requirements for the Degree Doctor in Philosophy. Philadelphia: The Temple University Graduate Board;
  • Gold, C.; Wigram, T. & Elefant, C. (2006). Music Therapy for autistic Spectrum disorders. Cochrane database of systematic reviews, 2;
  • Gold, C.; Wigram, T. & Kim, J. (2008). The effects of improvisational music therapy on joint attention behaviors in autistic children: a randomized controlled study. Journal of Autism and Development Disorders, 38, pp.1758-1766;Mello, A. M. (2005). Autismo: Guia Prático. 4ªedição. Brasília: Corde;
  • Miller, S. B. & Toca, J. M. (1979). Adapted melodic intonation therapy: A case study of an experimental language program for an autistic child. Journal of Clinical Psychiatry, 40, pp.201-203;
  • Padilha, M. C. (2008). A musicoterapia no Tratamento de Crianças com Perturbação do Espectro do Autismo. Dissertação de mestrado. Covilhã: Universidade da Beira Interior
  • Ricketts, L. (1976). Music and handicapped children. Journal of the Royal College of General Preacticioners, 26, pp.585-587;
  • Saperston, B. (1973). The use of music in establishing communication with an autistic mentally retarded child. Journal of Music Therapy, 10(4), pp.184-188;
  • Starr, E. & Zenker, E. (1998). Understanding autism in context of music therapy: Bridging theory and practice. Canadian Journal of Music Therapy, 6, pp.1-19.
Imagens acedidas em:
  • https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjRek_6T3rATjNSjtiXpJUReTudsMMsZwW9xot8mpRh7tVdQqF1z6q5EDH8slq0y0dtShHfdt1DYa196mpAMh1_pCn1360r-5e4ny1p3rshWW3TEJT1t4Nd4NesqAg8uFlk0xldttz4NFYl/s320/Autismo.gif
  • https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgFmAcSPSq47fG4gw3rH-_IWxqUn5UpPLpA9Lp8Yca5NksqTv2NEXugjrVdSfJiMgSDMOrb5A_ASeWOWtCMTzFEHbVbz6tAT2CJFuwd7jxBiFfbWuBZQzPewdfsU4LmMRzRz9lmFpDodYKV/s400/figura+musicoterapia+e+autismo.jpg


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